Em um país regido por uma Constituição que promete solidariedade e diminuição de desigualdades, não pode o Estado Juiz acolher uma tese jurídica que coloca uma empresa em situação que poderia ser definida como a melhor dos mundos: não se responsabilizar perante seus entregadores que cumprem corretamente suas funções em condições urbanas adversas, sob jornadas de trabalho ilimitadas e desprovidos de qualquer seguro empregatício contra infortúnios e, da mesma maneira, não se responsabilizar pelos atos de eventuais entregadores que não cumprem suas funções, causando danos a terceiros.
Reprodução/iFoodiFood é responsável por furto praticado por entregador, decide juiz da capital
Com esse argumento, o juiz André Augusto Salvador Bezerra, da 42ª Vara Cível de São Paulo, condenou o aplicativo de delivery iFood por um furto praticado por um de seus entregadores. A empresa deverá restituir a um condomínio da capital o valor dos objetos furtados, num total de R$ 1,7 mil. Um restaurante de comida japonesa também foi condenado de forma solidária.
O magistrado afastou a tese de que o iFood é "mera intermediadora" que disponibiliza um espaço virtual para veicular os produtos oferecidos pelos restaurantes que aderem ao seu serviço, não mantendo nenhuma relação empregatícia com os entregadores. "Trata-se, contudo, de uma tese social, econômica e, por conseguinte, juridicamente grave e, como tal, deve ser rechaçada com rigor", disse.
Ele criticou as condições de trabalho dos entregadores do iFood e disse que, apesar de considerável parcela trabalhar de modo constante, remunerado e sob orientações hierárquicas da gestora do aplicativo (sob pena de serem desligados), são tidos como "simples parceiros autônomos, desprovidos, pois, de qualquer seguro empregatício".
"O suposto vínculo autônomo entre a iFood e seus entregadores ou até mesmo entre a iFood e seus consumidores de encomendas, na realidade, não passa de um nome para relações contratuais intensamente desiguais: uma economicamente robusta empresa perante desempregados ou mal remunerados de um dos países mais desiguais do mundo ou perante consumidores presos pela ausência de tempo hábil para realizar atividades cotidianas, que não sejam as laborativas", completou.
Bezerra afirmou que não se pode admitir o retorno da economia de mercado aos "primeiros tempos da revolução industrial", quando as fábricas eram destituídas de qualquer responsabilidade perante seus empregados e terceiros em nome da "liberdade econômica". "É preciso levar os direitos a sério", disse o magistrado.
Para Bezerra, isentar o iFood de responsabilidade neste caso seria ignorar a ordem jurídica brasileira, "bem como desprezar a redução das desigualdades, a justiça e a solidariedade prometidas constitucionalmente". "É, em suma, não levar a sério o nosso Direito Positivo", concluiu.
Assim, o juiz aplicou ao caso o disposto nos artigos 186 e 932, III, ambos do Código Civil, que impõem a responsabilidade objetiva do empregador sobre ato de seus prepostos/empregados, e também o artigo 17 do Código de Defesa do Consumidor, que equipara a consumidor toda a vítima do evento, como o condomínio demandante.
Fonte: Conjur