Processo nº : 3279-88.2013.4.01.3810
Autores : JOSÉ MARIA RIBEIRO
Réu : CAIXA ECONÔMICA FEDERAL - CEF
Vistos, etc.
Trata-se de ação condenatória visando à alteração do índice de correção monetária das contas do FGTS
da(s) parte(s) autora(s), para que seja substituída a TR pelo INPC ou outro índice de preços escolhido pelo magistrado, desde janeiro/1999 e daí em diante até final levantamento dos saldos nas hipóteses legais, com incidência de correção e juros legais sobre os valores atrasados, requerendo também que seja antecipada a tutela para que a partir do ajuizamento os valores já sejam corrigidos pelo índice de preços escolhido. Informa(m) que a correção monetária do FGTS é regida pelo art. 13 da lei 8.036/90 que determina a aplicação dos mesmos índices aplicáveis à poupança, que esta a partir de fevereiro/1991 passou a ter sua correção determinada pela taxa referencial – TR – nos termos da lei 8.177/91, art. 12, que também determinou aplicar-se ao FGTS a TR do primeiro dia do mês a que se referir (art. 17).
Alega(m) que o art. 1º da lei 8.177/91 determinou que a metodologia de cálculo da TR deveria observar
normatização a ser fixada pelo CMN e calculada pelo BACEN levando em consideração a média da remuneração mensal dos depósitos a prazo fixo captados pelas instituições financeiras ou da remuneração mensal dos títulos públicos, o que desde então foi feito e continua até o presente.
No presente, o cálculo da TR está determinado pela Resolução CMN 3354/2007 e que, a partir de 1999,
com a alteração do regime cambial, a regulamentação do CMN fez com que a TR passasse a se distanciar sobremodo dos índices de inflação, ficando muito aquém da recomposição monetária pretendida na lei, conforme dados coligidos no processo, estando há muitos anos próxima ou igual a 0% ao mês, enquanto a inflação teima em se manter em níveis ainda elevados, resultando em perdas severas à(s) parte(s) autora(s), uma vez que a remuneração total – mesmo considerando a taxa de juros remuneratórios de 3% prevista em lei – está aquém da inflação há muitos anos.
Salienta(m) que em recente julgamento acerca dos precatórios, da EC 62/2009, o E. STF considerou inconstitucionais partes das alterações da EC 62/09 e a lei 11.960/09 que determinava também a aplicação do índice de remuneração básica da poupança (TR) como correção monetária dos precatórios e RPVs, pois entendeu que essa remuneração básica não tem natureza de correção monetária, não preservando o valor das dívidas fiscais, mantendo, nesse aspecto, remansosa jurisprudência que remonta ao julgamento da ADIN 493-0/DF, que considera inconstitucional a utilização do índice de remuneração básico da poupança (TR) como índice de correção dos efeitos inflacionários sobre a moeda.
Requer(em) a aplicação do INPC ou outro índice ou que se determine uma nova metodologia de cálculo
da TR como correção monetária do FGTS, decretando-se a nulidade ou revogando-se o art. 13 da lei 8036/90 e a Resolução CMN 3354/2007. Pede(m) a justiça gratuita. Regularmente citada, a CEF apresenta contestação na qual alega ilegitimidade passiva, eis que a formulação da TR está afeta ao BACEN/CMN, cumprindo à CEF unicamente obedecer às normas regulamentares estabelecidas por essas entidades e requer o litisconsórcio passivo da UNIÃO e do BACEN.
No mérito, alega que a TR é legal, prevista no art. 1º da lei 8.177/91 e no art. 13 da lei 8.036/90, seja
para remunerar as contas vinculadas como também para atualizar os débitos do empregador para com o FGTS, conforme Súmula STJ 459.
Observa que a opção do legislador por estabelecer a TR como índice de remuneração básica da
poupança, por meio da lei 8.177/91, foi reafirmada quando se negou aprovação a projeto de lei oriundo do Senado (PLS 193/2008), tendo em vista que a TR assegura modicidade aos financiamentos habitacionais e a reintrodução de índice de preços nos contratos e remunerações do sistema financeiro teve efeitos danosos durante a hiperinflação e que a TR foi estabelecida visando à desindexação da economia.
Alega que o redutor da TR é calculado conforme delegação estabelecida na lei e que a adoção de outro
índice iria impactar o sistema habitacional, pois o FGTS é seu principal financiador, com prejuízos à coletividade, aos trabalhadores e aos cofres públicos, requerendo a cabal improcedência dos pedidos veiculados. Trata-se de matéria de direito, cabível o julgamento antecipado (art. 330, CPC). É o relatório. Decido.
II – FUNDAMENTOS
A preliminar da CEF não merece prosperar. Como agente operador e único depositário do FGTS (art.
4º da lei 8036/90), está legitimada para todas as ações em que se discutem matérias atinentes ao fundo, sua remuneração, hipóteses de levantamento e demais litígios entre os beneficiários e o FGTS, o que já foi sumulado no verbete nº 249 da súmula do C. STJ.
Não têm a UNIÃO nem o BACEN legitimidade para figurarem ao lado da CEF nessas ações, pois,
ainda que sejam os agentes normativos do FGTS, a inconstitucionalidade/nulidade das normas citadas (leis 8.036/90 e 8.177/91 e resoluções do CMN/BACEN) foi veiculada apenas como fundamento jurídico incidenter tantum e não como pedido principal. O pedido principal é a recomposição das contas vinculadas, geridas e operadas pela CEF, única legitimada, portanto, para este processo.
Quanto ao mérito, há parcial procedência nos pedidos.
O FGTS: natureza jurídica de pecúlio constitucional obrigatório, não
portável e de longo prazo O FGTS foi criado pela lei 5.107, de 13/09/1966, com objetivo de facultar ao trabalhador a opção por formar um patrimônio com contribuições mensais do empregador, em substituição às regras de estabilidade no emprego previstas nos capítulos V e VII do Titulo IV da CLT. Trazia duas vantagens principais:
1) não exigia o prazo mínimo de permanência no emprego para a estabilidade (10 anos, pela
CLT);
2) permitia uma indenização proporcional ao tempo de serviço quase sempre superior a uma remuneração por ano trabalhado (parâmetro então utilizado), uma vez que a alíquota de 8% sobre as 12 remunerações mensais de um ano (mais o 13º) e a taxa de juros remuneratória de 3% ao ano superam – no decorrer de 12 meses – o valor de uma remuneração mensal. Para os empregadores, tinha a vantagem de permitir a livre dispensa dos trabalhadores, independente de justa causa ou do tempo de serviço, e a possibilidade de irem paulatinamente formando o fundo devido na dispensa com módicas contribuições mensais de 8% sobre a remuneração, ao invés de terem que desembolsar o valor total da indenização trabalhista no momento da dispensa. Para o Governo, significou uma das muitas medidas que geraram a poupança que financiou o chamado “Milagre Econômico Brasileiro” do final dos anos 60 e anos 70, quando, com forte presença estatal e investimentos em infraestrutura e
habitação, o País cresceu a taxas “chinesas” de até 14% ao ano, durante mais de uma década.
Desde a primeira legislação, houve a preocupação de assegurar às contas vinculadas a correção
monetária, o que se vê já no art. 3º da lei 5.107/66, fato incomum na época – quando ainda não havia generalização da correção monetária, como ocorreu nas décadas seguintes. Isso se deve ao fato de que o FGTS foi criado para ser um fundo de longo prazo, cujos saques eram limitados a poucas hipóteses, pelo que a recomposição das perdas inflacionárias tornava-se imperativa, pois os beneficiários poderiam demorar anos ou décadas até poderem sacar seus recursos e, se não houvesse recomposição das perdas inflacionárias, os valores depositados poderiam se tornar exíguos.
Nessa época, portanto, o FGTS tinha tríplice função:
1) pecúlio opcional do empregado formado por contribuições do empregador;
2) seguro-desemprego substitutivo da estabilidade prevista na CLT, titulo IV, capítulos V e VII; e
3) indenização pela despedida arbitrária.
A partir da CR/88 houve uma alteração substancial no FGTS. O art. 7º e seus incisos I, II e III, da CR/88, estabeleceram como direitos independentes do trabalhador: a indenização por despedida arbitrária (I), o seguro-desemprego público, de natureza previdenciária (II) e o fundo de garantia do tempo de serviço obrigatório (III).
Dessa forma, a partir da CR/88 – regulamentada pela lei 8.036/90 – o FGTS perdeu as funções de “seguro-desemprego” e de “indenização pela despedida sem justa causa”, assumidas, respectivamente, pelo atual “seguro-desemprego” (Lei 7.988/90 e alterações) e pela multa do art. 10 do ADCT-CR/88 (com as alterações da legislação complementar). Manteve sua função de pecúlio do trabalhador formado por contribuições do empregador, porém não mais facultativo: o FGTS se tornou um pecúlio obrigatório. Não há mais opção: todos os empregados são beneficiários e filiados obrigatórios do FGTS.
Além de ser um pecúlio obrigatório cujas hipóteses de levantamento são bastante restritas e quase
sempre vinculadas à extinção do contrato de trabalho ou aquisição/financiamento da casa própria (art. 20 da lei 8.036/90), o FGTS tem uma importante distinção em relação a outros pecúlios privados e poupanças /aplicações realizadas no mercado financeiro: o FGTS NÃO TEM PORTABILIDADE.
Ao contrário de outras opções postas à disposição de empregados e patrões para formar pecúlios ou
poupanças, como os fundos de previdência privada ou as aplicações em caderneta de poupança, fundos de investimento, títulos públicos ou privados, o titular do FGTS não tem possibilidade de transferir seus recursos para aplicações mais rentáveis, mais bem geridas ou mais seguras. Ainda que sua remuneração seja muito insatisfatória ou que o titular da conta do FGTS discorde das políticas de gestão do fundo ou que se atemorize quanto a sua solidez, não há o que fazer, o titular do FGTS não pode transferir ou sacar seus recursos e aplicá-los em outra modalidade disponível de poupança ou previdência
Essas três características – obrigatoriedade, ausência de portabilidade e prazo
longo/indeterminado – que têm base constitucional e legal, tornam ainda mais importante a questão da recomposição do seu valor vis a vis os efeitos corrosivos da inflação sobre a moeda na qual os depósitos são realizados: o saldo do FGTS, enquanto pecúlio obrigatório, não portável, por prazo indeterminado e previsto constitucionalmente, é uma obrigação de valor devida pela instituição operadora ao trabalhador titular da conta vinculada, protegida constitucional e legalmente dos efeitos inflacionários sobre a moeda.
Saliente-se que o art. 13 da lei 8.036/90, expressamente, se adéqua a esse entendimento, uma vez que
afirma a necessidade de “correção monetária” sobre os depósitos efetuados no FGTS – reproduzindo expressão utilizada em todas as leis que regularam o FGTS desde a Lei 5.107/1966. Na época de sua edição (1990), seguindo também a legislação precedente, o art. 13 da lei 8.036/90 vinculou a correção monetária à atualização monetária das cadernetas de poupança, que na época eram corrigidas por índices de preço, circunstância que se alteraria a partir da edição da lei 8.177/1991.
A caderneta de poupança a partir de 1991 e a TR: a necessária desindexação da economia e a desvinculação da inflação passada e futura em razão da portabilidade e facultatividade da caderneta A lei 8.177/91 – uma das medidas do chamado “Plano Collor II” – promoveu diversas medidas de desindexação da economia que foram mantidas e aperfeiçoadas no “Plano Real”, dentre as quais a substituição da ubíqua correção monetária das cadernetas de poupança por uma remuneração básica não mais atrelada à inflação passada, mas, inicialmente, à previsão feita pelo mercado financeiro de inflação futura: a taxa referencial ou TR.
Como estabelecido no art. 1º da lei 8.177/91, o cálculo da taxa referencial de cada dia seria feito a partir da média das remunerações mensais dos títulos públicos e privados negociados no mercado financeiro naquele dia.
A razão econômica por trás dessa metodologia é muito simples: as taxas mensais de remuneração
dos títulos no mercado financeiro em determinada data, em condições normais, representam a previsão consensualmente feita pelo mercado financeiro da inflação para aquele período (inflação futura) acrescida de uma taxa real de juros também para o mesmo período. A taxa real de juros (isto é, a parte da remuneração da aplicação financeira que supera a inflação no mesmo período), normalmente, tem certa estabilidade durante grandes períodos e, basicamente, é controlada pelo BACEN e por sua política monetária. Portanto, bastaria que a metodologia de cálculo da taxa referencial se adequasse às previsões de taxa real de juros médias em cada período para que o valor da TR se aproximasse da previsão de inflação futura do mercado financeiro. Desse modo, teoricamente, a TR foi criada para remunerar as cadernetas de poupança com a expectativa de inflação futura no período de aplicação, no lugar da inflação passada. Desindexava-se, assim, a caderneta de poupança (principal ativo financeiro na época) dos índices de inflação passada.
Nessa época havia ainda duas outras particularidades do mercado financeiro que tornavam o cálculo
da TR mais fácil e mais próximo dessa previsão teórica: 1) o imposto de renda incidente sobre as aplicações financeiras tinha como base de cálculo apenas o “rendimento real”, isto é, acima da inflação, e diversos foram os índices de correção monetária utilizados pelo Fisco (OTN, BTN, BTN-fiscal e, por fim, UFIR) para identificar o “rendimento real”; 2) o rendimento real líquido (isto é, descontado do IR) das aplicações era bem superior a 0,5% ao mês, que sempre foi a taxa de juros remuneratórios da poupança.
Essas duas particularidades permitiam que o cálculo da TR fosse feito de forma bem simples. Se
considerarmos “RB” o rendimento bruto médio dos títulos, “IF” a inflação futura prevista pelo mercado e “JR” os juros reais mensais médios, teríamos: (1 + RB) = (1 + IF) x (1 + JR). Para saber a previsão de inflação futura (IF), teríamos (1 + IF) = (1 + RB) / (1 + JR).
A metodologia inicial do Banco Central para cálculo da TR era bem simples: bastava estimar a taxa
de juros reais na economia por um determinado fator (chamaremos de JR) e calcular: (1 + TR) = (1 + RB)/
(1 + JR), onde RB era a média da remuneração bruta mensal da amostra de títulos públicos e privados.
A partir de 1995, com a primeira edição da MP 2.074-73 (MP 1.053, de 30/06/1995), que viria se tornar a lei 10.192/2001, foi criada a TBF – taxa básica financeira – definida como a média de remuneração bruta mensal da amostra de títulos do mercado financeiro e o cálculo da TR passou a se vincular à TBF pela fórmula simples: (1 + TR) = (1 + TBF)/ (1 + JR), e o fator JR foi sendo alterado pelas resoluções do CMN para se adequar às previsões de juros reais.
A partir de 1996 (lei 8.981/95), o imposto de renda sobre as aplicações financeiras passou a ser
calculado não mais sobre a remuneração real (descontada a inflação), mas sobre a remuneração total das aplicações, abandonando-se paulatinamente a utilização da UFIR como indexador no âmbito fiscal, e, com a estabilização promovida pelo Plano Real, as taxas de juros reais começaram a ceder.
Esses dois fatores fizeram com que o cálculo da TR tivesse que se modificar, pois não havia mais a
garantia de que o rendimento líquido das aplicações financeiras fosse sempre superar a previsão de inflação
futura mais uma taxa de juros de 0,5% ao mês. Com efeito, é possível demonstrar que, com a cobrança do IR sobre o total da remuneração da aplicação financeira, quanto maior a inflação e quanto menor a taxa de juros reais, maior a parcela dos juros reais que seria paga ao Fisco como imposto de renda – e, portanto, menor a taxa de juros reais líquida do período.A taxa de juros reais líquida poderia cair abaixo dos juros da poupança.
Na hipótese de a taxa de juros reais líquida das aplicações financeiras ficar abaixo da taxa de juros da
poupança, haveria uma migração em massa dos investidores dos títulos públicos e privados para a caderneta de poupança, provocando grandes transtornos no mercado financeiro e na dívida pública. Fazia-se necessário adequar o cálculo da TR de modo que a remuneração total da poupança (TR + 0,5% ao mês) não superasse a remuneração líquida média dos títulos públicos e privados.
Inicialmente, com a Resolução CMN 2.387/97, o fator (1+ JR) foi substituído simplesmente pelo
fator R, vinculado à própria TBF por um cálculo um pouco mais complexo e utilizando dois parâmetros, “a”
e “b” determinados no normativo.
A partir da Resolução CMN 2.604, de 23/04/1999, o fator R passou a se vincular à TBF e à taxa de
juros da poupança pela fórmula R = a + b x TBF, onde “a” sempre foi 1,005 (fator referente à taxa de juros
mensais da poupança) e “b” foi sendo alterado à medida que as taxas de juros brutas caíam ao longo do tempo. A primeira TR nessa nova metodologia foi referente a 01/06/1999 (art. 3º da Res. 2.604/99).
O fator “b”, fixado inicialmente em 0,48, foi sendo reduzido até que, na redação atual da Resolução
3.354/2007, para TBF abaixo de 11%, esse fator “b” tem sido discricionariamente fixado pelo BACEN.
Com tal metodologia, o cálculo da TR se desvinculou de seus objetivos iniciais (indicar a previsão
do mercado financeiro para a inflação no período futuro escolhido) para se ater tão somente à necessidade de impedir que a poupança concorra com outras aplicações financeiras.
Vê-se que há uma queda contínua dos índices mensais da SELIC e da TR, com a TR tendendo a zero
e alcançando esse valor nulo em 2012, enquanto o IPCA tem inicialmente um movimento de queda (que se
percebe no polinômio de aproximação, pois os índices mensais são muito irregulares) até chegar próximo à
média de 0,45% ao mês por volta de 2006, mantendo-se nesse nível médio desde então.
Olhando as curvas dos índices do IPCA e da TR (curvas irregulares, a da TR quase sempre abaixo do
IPCA que é a linha mais irregular) verifica-se que até meados de 1999 as duas curvas estavam praticamente sobrepostas (índices mensais muito próximos) e a partir do segundo semestre de 1999 há um descolamento, com os índices da TR quase sempre muito inferiores ao IPCA, chegando ao final do período com TR igual
ou muito próxima de 0%. O descolamento se deu, basicamente, a partir da metodologia iniciada pela Resolução CMN nº 2.604, de 23/04/1999, com efeitos a partir de 01/06/1999.
Em resumo, a remuneração básica das cadernetas de poupança, que desde sua criação no final dos anos 60 tinha sido realizada por algum índice de inflação passada, foi substituída pela TR por força da lei 8.177/91, num movimento de desindexação da economia, inicialmente substituindo a inflação passada pela previsão de inflação futura – objetivo do cálculo da TR nos seus primórdios – e, posteriormente, desvinculando-se totalmente também da inflação futura, pelas sucessivas metodologias de cálculo desse índice financeiro.
Se já quando de sua introdução a TR não mais podia ser utilizada como índice de correção monetária
(pois mesmo como “previsão de inflação futura” ela jamais pôde antecipar, de forma matematicamente precisa, essa inflação e, portanto, não podia ser utilizada como tal) e isso foi reconhecido pelo E. STF no julgamento da ADIN 493-0/DF, no último sesquidecênio ela se desvinculou totalmente de qualquer correlação com a inflação passada ou futura, não podendo jamais servir como índice de correção monetária e de manutenção do valor real de direitos e obrigações, como reconhecido pelo E. STF nos recentes julgamentos das ADI 4357/DF, ADI 4372/DF, ADI 4400/DF, ADI 4425/DF, que afastaram a utilização da TR para correção das dívidas judiciais como estabelecido na EC 62/09 e na lei 11960/09.
Há dois importantes pontos a se observar.
Em primeiro lugar, a metodologia da TR fixada no art. 1º da lei 8.177/91 é ampla o suficiente para
permitir que sucessivos e distintos cálculos normatizados pelas resoluções do CMN sejam consideradas válidas, pois em nenhum momento a lei 8.177/91 estabelece a obrigatoriedade de a TR se vincular a uma “previsão de inflação futura” ou algo semelhante – apesar de que esse era seu fundamento do ponto de vista estritamente econômico, quando da publicação da lei 8.177/91.
Em segundo lugar, as alterações realizadas no cálculo da TR e que finalizaram por reduzi-la a algo
próximo de zero, tiveram como fundamento o fato de que as cadernetas de poupança e as demais
aplicações financeiras são portáveis, intercambiáveis, concorrem entre si pelos recursos dos
aplicadores: não há nenhuma ilegitimidade ou invalidade evidente em reduzir a remuneração básica da poupança a percentuais ínfimos, pois o poupador pode, a qualquer tempo, retirar seus recursos da caderneta de poupança e colocá-los em outra aplicação financeira, se não estiver satisfeito. Além disso, as cadernetas de poupança podem ser sacadas a qualquer tempo e rendem mensalmente, são típicas aplicações de curtíssimo prazo, que permitem esse livre trânsito de recursos, se a rentabilidade ficar a desejar. Isto é, para a caderneta de poupança, a TR calculada da forma atual não é inválida nem ilegítima.
Mas tais características de livre portabilidade, de curtíssimo prazo e de facultatividade da poupança são exatamente opostas às características do FGTS, como já analisado anteriormente.
A inconstitucionalização progressiva do art. 13 da lei 8.036/90 c/c arts. 1º e 17 da lei 8.177/91
O dinamismo do Direito e da vida social que ele regula impõem, em certos casos, a necessidade de
verificar a existência ou não de validade e legitimidade atuais de normas que, na sua origem, eram
perfeitamente válidas e legítimas.
Isso porque situações concretas da vida social e normatizações paralelas que incidem sobre os
mesmos fatos originalmente tratados pela norma primitiva podem fazer com que seus objetivos se
desvirtuem, seus fins, inicialmente válidos e legítimos, passem a se opor à Constituição e seus princípios.
Oriunda da teoria constitucionalista alemã e já sufragada pelo E. STF em alguns julgados (v.g. HC
70.514/SP, RE 147.776, RE 135.328/SP), é a construção doutrinária chamada de “inconstitucionalidade progressiva” ou progressivo processo de inconstitucionalização de normas jurídicas originariamente válidas.
É a situação dos autos. O art. 13 da lei 8.036/90, ao estabelecer que “Os depósitos efetuados nas contas
vinculadas serão corrigidos monetariamente com base nos parâmetros fixados para atualização dos saldos dos depósitos de poupança e capitalização juros de (três) por cento ao ano”, claramente objetivava dar continuidade ao princípio estabelecido desde a lei 5.107/66 de que o pecúlio representado pelo FGTS é uma obrigação de valor, imune aos efeitos corrosivos da inflação, sujeito a correção monetária de seus depósitos e ainda vencendo juros remuneratórios “reais” (acima da inflação) de 3% ao ano.
Não apenas dava continuidade à tradição do FGTS, como densificava de forma válida, conforme à Constituição, o direito trabalhista fixado no art. 7º, III, da CR/88, que previu o pecúlio obrigatório do fundo de garantia. Tratando-se de pecúlio obrigatório, não portável, a ser usufruído após longo prazo de sua formação, é mais razoável a interpretação de que a norma constitucional contém implicitamente a obrigatoriedade de que o valor desse fundo seja protegido da corrosão inflacionária.
À época da publicação da lei 8.036/90, a “atualização dos saldos dos depósitos de poupança”
também era feita por índices de inflação. Fica claro que o art. 13 da lei 8.036/90, ao vincular a correção do
FGTS à da poupança, visava à plena proteção do FGTS quanto aos efeitos corrosivos da inflação.
Com a edição da lei 8.177/91, que criou a TR no seu art. 1º e no seu art. 17 estabeleceu que para fins
do art. 13 da lei 8.036/90 a TR aplicável ao FGTS seria aquela calculada no dia primeiro de cada mês, as coisas já começam a tomar uma forma distinta. A “atualização dos saldos dos depósitos da poupança” deixa de se dar por índice de correção monetária e passa a se dar pela TR, com metodologia a ser fixada por órgão administrativo, inicialmente objetivando ser uma previsão implícita de inflação futura feita pelo mercado financeiro, mas sem nenhuma garantia de que tal metodologia se manteria – como não se manteve. A necessidade de adequar a TR aos novos tempos de reduzidos juros reais e alteração no cálculo do imposto de renda das aplicações financeiras,
fez com que ela fosse reduzida a ponto de se tornar praticamente nula, para evitar que houvesse uma fuga de recursos das aplicações financeiras para a caderneta de poupança.
Isto é, progressivamente, o art. 13 da lei 8.036/90, c/c art. 17 da lei 8.177/91 e com o art. 1º da lei 8.177/91, deixou de garantir ao FGTS a recomposição das perdas inflacionárias, sujeitando o FGTS a perdas consideráveis em relação à inflação. As tabelas abaixo dão uma idéia das imensas perdas incorridas e do caráter progressivo, da aceleração da perda do FGTS em relação à inflação medida por vários índices (a remuneração do FGTS nesses cálculos inclui a correção e os juros):
COMPARAÇÃO ENTRE FGTS E ÍNDICES DE PREÇO
01/07/1994 = 1000,00 - Valores corrigidos ate 01/01/2014
FGTS INPC IPCA IGP-M
4.890,29 4.564,84 4.450,60 5.836,80
<== Valor corrigido
7,13% 9,88% -16,22%
<== Ganho/Perda (+/-) Acumulado em %
0,35% 0,48% -0,90%
<== Ganho/Perda (+/-) Por ano em %
COMPARAÇÃO ENTRE FGTS E ÍNDICES DE PREÇO
01/01/2003 = 1000,00 - Valores corrigidos ate 01/01/2014
FGTS INPC IPCA IGP-M
1.645,47 1.867,56 1.870,51 1.987,67
<== Valor corrigido
-11,89% -12,03% -17,22%
<== Ganho/Perda (+/-) Acumulado em %
-1,14% -1,16% -1,70%
<== Ganho/Perda (+/-) Por ano em %
COMPARAÇÃO ENTRE FGTS E ÍNDICES DE PREÇO
01/01/2011 = 1000,00 - Valores corrigidos ate 01/01/2014
FGTS INPC IPCA IGP-M
1.111,25 1.189,21 1.193,84 1.195,69
<== Valor corrigido
-6,56% -6,92% -7,06%
<== Ganho/Perda (+/-) Acumulado em %
-2,23% -2,36% -2,41%
<== Ganho/Perda (+/-) Por ano em %
Em todas as tabelas, considera-se um depósito de R$1.000,00 feito em 01/07/1994 (início do Plano
Real), 01/01/2003 (início do governo Lula) e 01/01/2011 (início do governo Dilma). Na primeira coluna à esquerda, está o valor atualizado desse depósito no FGTS (com correção e juros) e o mesmo valor atualizado por 3 índices de preço (INPC e IPCA, do IBGE, e IGP-M da FGV), até 01/01/2014.
Na segunda linha das tabelas, o ganho ou perda acumulado da remuneração total do FGTS em
relação aos índices. Na terceira linha, o ganho ou perda anual do FGTS em relação a cada índice.
Observa-se que a remuneração total do FGTS (incluindo juros) é inferior ao IGP-M em todos os
períodos e essa perda vai se acentuando com o passar do tempo: de 07/1994 a 01/2014 a perda anual é de -
0,9%, de 01/2003 a 01/2014 a perda anual é de -1,7% e no governo Dilma a perda chega a -2,41% ao ano.
No caso dos índices do IBGE, no período desde o Plano Real há um pequeno ganho real anual
(+0,35% e +0,48%, respectivamente), que se transforma em perdas reais anuais a partir do governo Lula (-
1,14% e -1,16%) e que são aumentadas no governo Dilma (-2,23% e -2,36%).
Em termos econômicos, isso quer dizer que a taxa de juros reais do FGTS – que a lei prevê em
+3% ao ano – está NEGATIVA: os beneficiários do FGTS estão perdendo da inflação ano a ano e essa perda tem se acelerado, chegando a -2,36% ao ano no governo Dilma, nos últimos 3 anos, pelo IPCA/ IBGE.
Mesmo se considerarmos o período desde o Plano Real (primeira tabela) e os índices de preço do IBGE, os ganhos reais (acima da inflação) de +0,35% e +0,48% ao ano, respectivamente, são muito inferiores àquilo que a lei prevê, +3% ao ano.
Está claro que fatores alheios ao legislador da lei 8.036/90 fizeram com que o art. 13
progressivamente se tornasse inconstitucional, na parte em que vincula a correção monetária das contas do FGTS aos índices de atualização da poupança e estes, por sua vez, passam a ser calculados por metodologia prevista nos arts. 1º e 17 da lei 8.177/91, que não mais garante a recomposição das perdas inflacionárias.
Como se viu no tópico anterior, a metodologia iniciada pela Resolução CMN 2.604, de 23/04/1999,
com efeitos a partir de 01/06/1999, deu início ao descolamento da TR dos índices de inflação, sendo esse o momento que se deve fixar para a recomposição das contas do FGTS.
Diante do exposto, tendo em vista o que já decidido pelo E. STF no caso da lei 11.960/09 e o fato de
o FGTS ser um pecúlio constitucional obrigatório, não portável e de longo prazo, cuja garantia de
recomposição das perdas inflacionárias está implícita na disposição do art. 7º, III, da CR/88, que assegura esse direito trabalhista fundamental a todos os trabalhadores, é de se declarar inconstitucional, pelo menos desde a superveniência dos efeitos da Resolução CMN 2.604, de 23/04/1999, a vinculação da correção monetária do FGTS à TR, conforme art. 13 da lei 8.036/90 c/c arts. 1º e 17 da lei 8.177/91.
Tendo havido pedido expresso para utilização do INPC e sendo esse índice utilizado nos benefícios
previdenciários e, neste Juízo, para correção monetária das dívidas judiciais, entendo razoável e mais consentâneo com as finalidades do FGTS que seja esse o índice de correção monetária dos saldos do FGTS.
III - DISPOSITIVO
Nessas razões, julgo parcialmente procedentes os pedidos para declarar a inconstitucionalidade
parcial superveniente do art. 13 da lei 8.036/90 c/c arts. 1º e 17 da lei 8.177/91, desde 01/06/1999, pela
não vinculação da correção monetária do FGTS a índice que venha recompor a perda de poder
aquisitivo da moeda, e condenar a CEF a:
1) no caso dos depósitos do FGTS não levantados até a data da recomposição:
a) recalcular a correção do FGTS desde 01/06/1999, substituindo a atualização da TR
pelo INPC, mesmo nos meses em que a TR for superior ao INPC ou que o INPC for negativo,
mantendo-se os juros remuneratórios de 3% ao ano previstos no art. 13 da lei 8.036/90, depositando as
diferenças corrigidas na(s) conta(s) vinculada(s) respectiva(s);
b) pagar juros moratórios de 1% ao mês sobre as diferenças corrigidas apuradas no
item “a”, desde a citação até a data da recomposição da(s) conta(s) vinculada(s), depositando os juros
na(s) conta(s) vinculada(s) respectiva(s);
2) no caso dos depósitos do FGTS levantados entre 01/06/1999 até a data da recomposição:
a) recalcular a correção do FGTS desde 01/06/1999, substituindo a atualização da TR
pelo INPC, mesmo nos meses em que a TR for superior ao INPC ou que o INPC for negativo,
mantendo-se os juros remuneratórios de 3% ao ano previstos no art. 13 da lei 8.036/90, até a data do
levantamento a partir da qual a diferença deverá ser corrigida unicamente pelo INPC até o depósito em juízo nos termos do art. 475-J do CPC;
b) pagar juros moratórios de 1% ao mês sobre as diferenças corrigidas do item “a”
desde a citação até a data do depósito em juízo nos termos do art. 475-J do CPC.
Indefiro a antecipação da tutela, haja vista a possibilidade de irreversibilidade do provimento, nos
termos do art. 273, §2º, do CPC, ausente também o periculum in mora, uma vez que não existe demonstração de interesse ou necessidade urgente de utilização dos recursos adicionais.
Deferida a justiça gratuita, ante a existência dos pressupostos da lei 1.060/50.
Sem custas, em vista da gratuidade judiciária. Em se tratando de causa do JEF, sem condenação em
honorários; em se tratando de causa do procedimento ordinário, fixo honorários em trezentos reais, a serem
pagos pela CEF, conforme art. 20, §4º, do CPC, por se tratar de causa sem instrução probatória e com fundamentos padronizados, considerando a inconstitucionalidade do art. 29-C da lei 8.036/90.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Pouso Alegre/MG, 16 de janeiro de 2014.
Márcio José de Aguiar Barbosa