O credor fiduciário é solidariamente responsável pelo pagamento do IPVA até o cumprimento integral do contrato, pois a propriedade é da instituição financeira. Seguindo esse entendimento, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou recurso de um banco que pedia que o devedor fiduciante fosse reconhecido como único responsável pelo pagamento do IPVA por exercer efetivamente os atributos da propriedade.
Na alienação fiduciária, muito utilizada no financiamento de veículos, a propriedade é transmitida ao credor fiduciário em garantia da dívida contratada, enquanto o devedor fica tão somente como possuidor direto da coisa. Trata-se do fenômeno conhecido como desdobramento da posse.
O relator do recurso, ministro Humberto Martins, destacou em seu voto que, se o credor fiduciário é o proprietário, deve-se reconhecer a solidariedade, pois “reveste-se da qualidade de possuidor indireto do veículo, sendo-lhe possível reavê-lo em face de eventual inadimplemento”.
O ministro explicou que, no contrato de alienação fiduciária, o credor mantém a propriedade do bem, de modo a tornar o IPVA um “tributo real”, tendo como consequência lógica a possibilidade de solidariedade em relação ao pagamento.
VOTO DO RELATOR
RECURSO ESPECIAL Nº 1.344.288 - MG (2012/0194587-5)RELATOR : MINISTRO HUMBERTO MARTINS RECORRENTE : BANCO MERCANTIL DO BRASIL S/A E OUTROS
ADVOGADOS : WERTHER BOTELHO SPAGNOL E OUTRO(S)OTTO CARVALHO PESSOA DE MENDONÇA EOUTRO(S)
RECORRIDO : ESTADO DE MINAS GERAIS
PROCURADOR : MARISMAR CIRINO MOTTA E OUTRO(S)
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS (Relator):Cuida-se de recurso especial interposto pelo BANCO MERCANTILDO BRASIL S/A e OUTROS, com fundamento no art. 105, inciso III, alínea "a", da Constituição Federal, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais que, em demanda relativa a IPVA, negou provimento ao recurso de apelação. A ementado julgado (fls. 886/895, e-STJ):
"APELAÇÃO CÍVEL - MANDADO DE SEGURANÇA - ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE VEÍCULO AUTOMOTOR - IPVA - RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO DEVEDOR E CREDOR
FIDUCIÁRIO - LEI Nº. 14.937/2003 - SENTENÇA MANTIDA. A responsabilidade pelo pagamento do IPVA incidente sobre veículo objeto de alienação fiduciária é solidária entre o devedor e o credor fiduciário, consoante o artigo 5º da Lei nº.14.937/2003.
Rejeitados os embargos de declaração (fls. 936/939, e-STJ).Nas razões do recurso especial, os recorrentes alegam ofensa aos arts.1.228, 1.361 e 1.363 do Código Civil e ao art. 110 do CTN. Sustentam, em síntese,
que o devedor fiduciante é o único responsável pelo pagamento do IPVA, pois exerceefetivamente os atributos da propriedade.Apresentadas as contrarrazões (fls. 1041/1046, e-STJ), sobreveio o juízo de admissibilidade positivo da instância de origem (fls. 1079/1080, e-STJ). É, no essencial, o relatório.
RECURSO ESPECIAL Nº 1.344.288 - MG (2012/0194587-5)
EMENTA TRIBUTÁRIO. IPVA. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. PROPRIEDADE. CREDOR FIDUCIÁRIO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA.
1. Na alienação fiduciária, a propriedade é transmitida ao credor fiduciário em garantia da obrigação contratada, sendo o devedor tão somente o possuidor direto da coisa.
2. Sendo o credor fiduciário o proprietário do veículo, o reconhecimento da solidariedade se impõe, pois reveste-se da qualidade de possuidor indireto do veículo, sendo-lhe possível reavê-lo em face de
eventual inadimplemento.
3. No mesmo sentido, mutatis mutandis: AgRg no REsp1066584/RS, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em16/3/2010, DJe 26/3/2010; REsp 744.308/DF, Rel. Min. Castro Meira,
Segunda Turma, julgado em 12/8/2008, DJe 2/9/2008.Recurso especial improvido.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS (Relator):
O Tribunal de origem firmou entendimento no sentido de que o credor fiduciário é solidariamente responsável pelo pagamento do IPVA até o cumprimento integral do contrato, pois a propriedade é da instituição financeira.
Na alienação fiduciária, a propriedade é transmitida ao credor fiduciário em garantia da obrigação contratada, sendo o devedor tão somente o possuidor direto da coisa.No julgamento do REsp 881.270/RS, de relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, DJe 19.3.2010, a Quarta Turma bem esclareceu os desdobramentos dos contratos de alienação fiduciária, verbis:
"Objetivando estabelecer as corretas premissas para a solução da controvérsia, não é ocioso assinalar que, em contratos com alienação fiduciária em garantia, ocorre o fenômeno do desdobramento da posse, tornando-se o devedor o possuidor direito da coisa, e o credor – titular da propriedade fiduciária resolúvel -,possuidor indireto . Somente após o pagamento da dívida, a propriedade fiduciária do credor se extingue em favor do devedor, bem como sua posse indireta, tornando-se o devedor proprietário e
possuidor pleno. Aliás, 'fidúcia' pressupõe confiança, segurança. O adquirente da coisa gravada com alienação fiduciária exerce a posse consentida pelo proprietário , em confiança de que pagará as
prestações ou restituirá o bem." Neste sentido, ensina Caio Mário da Silva Pereira que a alienação fiduciária é "a transferência, ao credor, do domínio e posse indireta de uma coisa,independentemente de sua tradição efetiva, em garantia do pagamento deobrigação a que acede, resolvendo-se o direito do adquirente com a solução dadívida garantida " (Instituições do direito civil, 18. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2003. p.
426).
No mesmo sentido:
"PROCESSUAL CIVIL - EXECUÇÃO - BEM ALIENADO FIDUCIARIAMENTE - PENHORA - IMPOSSIBILIDADE - PROPRIEDADE DO CREDOR FIDUCIÁRIO - EMBARGOS DE TERCEIRO - LEGITIMIDADE ATIVA DO DEVEDOR-EXECUTADO - EXPRESSA PREVISÃO LEGAL.
1. 'A alienação fiduciária em garantia expressa negócio jurídico em que o adquirente de um bem móvel transfere - sob condição resolutiva - ao credor que financia a dívida, o domínio do bem adquirido. Permanece, apenas, com a posse direta. Em ocorrendo inadimplência do financiado, consolida-se a propriedade resolúvel' (REsp 47.047-1/SP, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros).
2. O bem objeto de alienação fiduciária, que passa a pertencer à esfera patrimonial do credor fiduciário, não pode ser objeto de penhora no processo de execução, porquanto o domínio da coisa já não pertence ao executado, mas a um terceiro, alheio à relação jurídica.
3. Por força da expressa previsão do art. 1.046, § 2º, do CPC, é possível a equiparação a terceiro, do devedor que figura no pólo passivo da execução, quando este defende bens que pelo título de sua
aquisição ou pela qualidade em que os possuir, não podem ser atingidos pela penhora, como é o caso daqueles alienados fiduciariamente.
4. Recurso especial não provido."
(REsp 916.782/MG, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma,julgado em 18/9/2008, DJe 21/10/2008)."PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. CÉDULA DE CRÉDITO COM ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA.IMPENHORABILIDADE. DECRETO-LEI 911/69. PRECEDENTES
JURISPRUDENCIAIS.
I - Os bens alienados fiduciariamente por não pertencerem ao devedor-executado, mas à instituição financeira que lhe proporcionou as condições necessárias para o financiamento do veículo automotor não adimplido, não pode ser objeto de penhora na execução fiscal.
II - A cédula de crédito com alienação fiduciária não se confunde com os créditos que gozam de garantia real ou pessoal, os quais, não gozam de primazia frente aos créditos tributários, visto que, a transação que aquele envolve "não institui ônus real de garantia, mas opera a própria transmissão resolúvel do direito de propriedade." III - Recurso Especial a que se dá provimento, para excluir da penhora o bem indevidamente constrito."(REsp 214763/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Segunda Turma,julgado em 15/8/2000, DJ 18/9/2000, p. 121).
Com efeito, sendo o credor fiduciário o proprietário do veículo, o reconhecimento da solidariedade se impõe, pois reveste-se da qualidade de possuidor indireto do veículo, sendo-lhe possível reavê-lo em face de eventual inadimplemento. A classificação doutrinária que subdivide os tributos em reais e pessoais
reforça a assertiva lançada, uma vez que no contrato de alienação fiduciária o credor mantém a propriedade do bem, de modo a tornar o IPVA um "tributo real", tendo como consequência lógica a possibilidade de solidariedade ex vi legis em relação ao pagamento da exação. Em questão análoga, a jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que no arrendamento mercantil (leasing), o arrendante, por ser possuidor indireto do veículo, é responsável solidariamente pelo pagamento do IPVA. Neste sentido:
"PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. IPVA. VEÍCULO OBJETO DE LEASING. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DA ARRENDANTE PELO PAGAMENTO DE DÍVIDA TRIBUTÁRIA.FATO GERADOR DO TRIBUTO O CORRIDA ANTES DA 'OPÇÃODE COMPRA'. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC.
NÃO OCORRÊNCIA. ART. 620 DO CC. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO.
(...)
3. No caso dos autos, o TJ/RS consignou que [...] sendo do arrendante a propriedade do veículo, compete-lhe, consequentemente, o pagamento do tributo decorrente do fato gerador. De outro lado, observo que o lançamento do imposto ocorreu em 06/04/2001 [...], momento em que ainda não concretizada a opção de compra pelo arrendatário.
4. A jurisprudência do STJ é no sentido de que a responsabilidade da arrendante, possuidora indireta do veículo, é solidária, razão pela qual é perfeitamente possível figurar no pólo passivo da execução fiscal. Precedentes: REsp 744.308/DF, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 12/8/2008, DJe
2/9/2008; REsp 897.205/DF, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 15/3/2007, DJ 29/3/2007 p. 253; REsp 868.246/DF, Rel. Ministro Francisco Falcão, Primeira Turma, julgado em 28/11/2006, DJ 18/12/2006 p. 342.
5. Agravo regimental não provido." (AgRg no REsp 1066584/RS, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 16/3/2010, DJe 26/3/2010). "TRIBUTÁRIO. IPVA. ARRENDAMENTO MERCANTIL. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. ARRENDANTE.
1. O arrendante, por ser possuidor indireto do bem e conservar a propriedade até o final do contrato de arredamento mercantil, é responsável solidário para o adimplemento da obrigação tributária relativa ao IPVA, nos termos do art. 1º, § 7º, da Lei Federal nº 7.431/85. Precedentes: (REsp 897.205/DF, Rel. Min. Humberto Martins, DJU de DJU de 29.03.07; REsp 868.246/DF; Rel. Min. Francisco Falcão, DJU de 18.12.06).
2. Recurso especial provido." (REsp 744.308/DF, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma,julgado em 12/8/2008, DJe 2/9/2008).Apesar de serem institutos jurídicos distintos, "especificamente quanto ao desdobramento da posse direta e da posse indireta, a reserva de domínio e a alienação fiduciária em garantia aproximam-se " (Rodrigues Júnior, Otavio Luiz. Código Civil Comentado. Volume VI, Tomo I. Compra e Venda. Troca. Contrato Estimatório. São Paulo: Atlas, 2008, p. 426). O que, em verdade, justificaria o mesmo tratamento dado ao arredamento mercantil ao presente caso.
É inerente aos contratos com alienação fiduciária em garantia o desdobramento da posse (direta e indireta) e a possibilidade de busca e apreensão do bem, logo, o fiduciante, que é a financiadora, "no ato do financiamento, adquire a propriedade do bem, cuja posse direta passa ao comprador fiduciário, conservando a posse indireta (IHERING) e restando essa posse como resolúvel por todo o tempo, até que o financiamento seja pago." (REsp 844.098/MG, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Rel. p/ Acórdão Min. Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 6/11/2008, DJe 6/4/2009).
Por último, verificar se a Lei Estadual n. 14.9437/03, do Estado de Minas Gerais, elegeu o credor fiduciário como contribuinte direto, e não como responsável solidário para o pagamento do IPVA, incidiria no óbice da Súmula 280/STF, porquanto seria indispensável a interpretação de legislação local.
Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial.
É como penso. É como voto.
MINISTRO HUMBERTO MARTINS
Relator